Friday, September 12, 2008

HOMOSSEXUALIDADE

Também a homossexualidade apresenta-se construída, e como tal é assimilada como comportamento alternativo, num mercado que se alimenta da própria identidade, vendida sob a forma de produtos culturais. Desde que a academia descobriu o filão das minorias e passou à exploração sistemática, multiplicam-se os estudos sobre os diferentes, as teses sobre os desvios, os congressos sobre as perversões. O reflexo desta nova atitude intelectual reflete-se no cinema de massa: a proliferação de monstrinhos queridos sob a forma, de extraterrestres, robôs, computadores, humanóides, lobisomens, vampiros, etc. A sociedade, que reprimia sua realidade e mantinha o horror em sua sublimação, consome cada vez mais a homossexualidade como valor cultural, diversificando seus estereótipos no mercado da imagem. Assim, o mito de Rimbaud ("o poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos") prójeta-se hoje sobre todos os rebeldes sem causa cujo ícone, estampado em milhões de camisetas, é James Dean.

Muitos estereótipos dos homossexuais partem deles próprios. Quase todos os heróis de Tennessee Williams, por exemplo, são homossexuais mergulhados na lama, no crime, no remorso. Ele glorifica a homossexualidade como prática proibida, reforçando a conotação sinistra, mórbida e doentia que a sociedade lhe atribui. Ele também a sublima na loucura da própria irmã lobotomizada, misturando ambos os pathos numa personagem feminina in-quietante — aleijada, alcoólatra, prostituída — e que, apesar de tudo, reivindica o seu quinhão de glória. Há algo da noção de bode expiatório nos homossexuais de Williams: eles são como reis abje-tos, como deuses impuros... Em suas memórias, escritas com o propósito deliberado de ganhar dinheiro 51ko escritor revelou sua vida promíscua num estilo surpreendentemente vulgar. Narrando como "caçava" marinheiros com urn amigo até serem espancados por dois deles após o coito; divulgando proezas sexuais e não escondendo os traços perver¬sos do seu caráter que o fez abandonar um velho amante ao sentir nele uma irreversível impotência sexual, adere ao estereótipo que criou e torna-se, sem o brilho de seu estilo literário, um personagem de Tennessee Williams.

Na autobiografia de Mohamed Choukri há uma contradição interna insuperável: do início ao fim, ele descreve sua sexualidade mimética, dirigindo-a para o corpo da mulher. No meio do relato surge, porém, um "fato diverso": louco de desejo, agarra e violenta um menino. Isso ocorre sem maiores comentários. A beleza do garoto é a única justi¬ficativa para acariciar-lhe os genitais, beijar-lhe a boca e possuí-lo à força num trigal. Depois do esdrúxulo desejo, Mohamed volta à normalidade, até que, passando fome, prostitui-se para um velho. Então, sentindo nojo, reflete: "Não faltam mulheres nesta terra. Por que esses homens preferern os garotos?" Aí, Mohamed eliminou de sua mente o caso com "o filho bonito da vizinha". Este lhe resistiu tanto quanto ele resistiu ao pederasta. E a ambos Mohamed censura, como um inocente. Mas, como dizia Hegel, "ninguém é inocente, a não ser a pedra".

Roland Barthes observou que, em países como o Marrocos, é normal que um homem faça amor com outro, desde que não se diga nada a respeito. Dizer a relação homossexual é colocar-se à margem de uma cultura que se quer "viril". Em suas pesquisas sobre a Roma imperial, Paul Veyne mostrou que, aí, a sodomia e a relação eram atributos normais dos escravos: os senhores, conquanto se entregassem à homossexualidade com eles, permaneciam livres e viris, porque ativos no coito anal e passivos no coito oral. Nesta sociedade falocrática, tal como é descrita por Peírônio, a impotência significava a morte social.

Tais exemplos provam que os tabus referentes à sexualidade cercam mais sua expressão que sua prática. E, assim, como todo édipo, o édipo marroquino também deseja matar o pai e casar com a mãe. Só que, aí, o pai é um autêntico monstro, que chega a assassinar um dos filhos, torcendo-lhe o pescoço. A mãe, batida pelo marido, permanece dominada pela carne: "Eles dormiam nus e entrelaçados. Era isto, então, que os unia: o desejo e o desfrute dos corpos". A percepção do escândalo não torna Mohamed um introspectivo, alguém que passará a refletir sobre "isso" a ponto de tornar-se um criador ou um revolucionário. Pelo contrário: "Eu também, quando for grande, terei uma mulher. De dia, baterei nela. De noite, vou cobri-la de beijos e carícias. É um jogo, um passatempo divertido, este, entre o homem e a mulher". Ele vai reproduzir tudo, porque só consegue atenuar o ódio ao pai assemelhando-se a ele.

A relação de Mohamed com as mulheres é uma relação de violência psíquica: de consumo. Para ele, os homens e as mulheres são o que são; não imagina outra sociedade. Quando seu desejo desperta, ele o sacia em galinhas, cabras, cadelas e bezerras. Para se masturbar, constrói uma árvore-mulher com buracos no lugar dos seios, onde introduz frutas, que vai mastigando e comendo enquanto se esfrega no tronco. Do sexo da mulher ele tem medo: pensa que é uma boca espumante e cheia de dentes. Na verdade, o que teme é a consciência do outro. Enquanto faz sexo com plantas e animais, pode satisfazer-se à vontade, sem compromisso moral. Quando o amor se realiza entre seres conscientes, as repercussões são infinitas. Este perigo ele exorciza projetando-o para a vagina e para seu próprio sexo, que se lhe afigura como uma "faca", espirrando um "veneno" esbranquiçado. Ao perceber que a mulher que o inicia não se distingue muito de um objeto, dando-se como um "talho" por algum dinheiro, perde o medo e a vergonha. A partir de então, pode substituir com êxito as galinhas por prostitutas. Frequenta bordéis, passa a ter amantes. Mas, a amizade só a terá com outros homens, porque só a estes admite como iguais.

Mohamed Choukri faz uma apropriação carnal do mundo; falta-lhe, no entanto, aquilo que permanece e transforma tudo em valor. Tah^r Ben Jelloun escreveu que Mohamed Choukri "não é um intelectual pequeno-burguês". Sim, mas a miséria tampouco é gloriosa. Para que o ex-marginal transcendesse seu mundo, era preciso que sofresse e gozasse muito mais, ou de outro modo. Compará-lo a Jean Genet é um despropósito: este ladrão encontrou na literatura sua liberdade; o ladrão Choukri encontrou na literatura sua catarse.

É, de fato, na obra de Genet que a homossexualidade encontra sua mais plena expressão; fantasias, escatologias, técnicas de sedução e acoplamento nunca antes foram escritas com tanta poesia e vontade. Rebaixado, excluído e marcado pela sociedade, Genet vingou-se dos que definirain seu amor como um mal aceitando-o até provocar nos outros, pela literatura, o desejo de experimentá-lo. Em seu universo barroco, o desejo de abismar-se no pecado significa querer encontrar, no auge da perdição, o máximo do prazer. É o equivalente moral do sadomasoquismo físico encontrado em Appolinaire: o sofrimento infligido ao corpo tem o efeito de intensificar o prazer, e como este nio é limitado por nenhuma moral, os corpos passam a existir para serem destruídos no ato sexual — feridas, mutilações, macerações, decepações, assassinatos e massacres são continuações do sexo por outros meios. Frequentemente, Genet rende-se aos símbolos militares, por saber quanto de homossexualismo- contém, em segredo, o militarismo.
Mas, ao invés de condenar a trapaça de que é vítima, ele a usufrui ao máximo, abstraindo dos soldados, carrascos e torturadores a sua ideologia, para apresentá-los e gozá-los como corpos belos e musculosos, preparados para o amor viril. Sob qualquer pretexto, Genet dedica-se a pintar retratos de homens em situações que os conduzem à beira do orgasmo: escritos na prisão, seus melhores textos têm uma função masturbatória.

E é justamente nesta alienação narcisista que o escritor revela existir, subterrânea à realidade política transitória, uma realidade sexual explosiva. Por isso, sua obra, que faz a apologia do crime, da traição e do mal, é paradoxalmente mais livre que a dos surrealistas que a condenaram.

Se a homossexualidade de Genet parece inassimilável, para que o comércio da identidade homossexual prosperasse constituiu-se uma verdadeira estética que não se limita ao consumo do gueto, mas estende-se por toda a sociedade.

O comportamento, o vestuário, a linguagem — tudo —, num ser gregário, manifestam a ideologia do grupo, os valores consagrados pelo modelo eleito. Naturalmente, a adoção de uma estética de grupo por um indivíduo "alheio" é um, fenómeno de mimetismo inconsciente. A "consciência de grupo" surge quando um indivíduo quer ser identificado imediatamente ao grupo, para facilitar os contatos gregários ou desafiar a comunidade dos "outros". Tratando-se da estética homossexual, convém notar que, se há heterossexuais que a adotam por provocação ou inconsciência, há homossexuais que a recusam, por ser a marca um modo gregário de viver a diferença, amortecendo o impacto social da perversão, reformulando-a para uma estereotipia dentro da qual os homossexuais massificados podem enfrentar a vida mais ou menos ajustados e tolerados, tributários de um sistema que volta a discriminar toda relação que se recusa ao gregarismo.

É elucidativo assistir a uma sessão de Rock Horror Picture Show convertida em ritual de iniciação: turmas acossadas pelo terror da solidão dialogam com sombras, tomam vampiros por amigos, vivem intensamente as emoções bissexuais orgíacas que se repetem com perfeita regularidade a cada projeção, manifestando uma integração mágica no círculo dos que "sabem" — abrir guarda-chuvas, lançar arroz, água, acender velas e dar réplicas na hora certa. São espectadores oriundos de uma parcela radicalizada da burguesia, protofascistas já adestrados, esperando a hora e a vez de poderem praticar um linchamenío de verdade. As vítimas poderão ser as mesmas que, no filme, em outros espetáculos, carnavais e noites de exceção, comandam a loucura coletiva. Nas noites comuns das grandes cidades, elas saem de suas tocas para desfilar fantasias e máscaras esculpidas na própria carne. Não são alegres nem falam da antiga questão social, política ou económica. Elas são o outro-em-si-mesmas, e revelam a miséria invisível que se espalha pelo conglomerado urbano. E assim se mostram: aberrações noturnas, monstros de silicone, esmolando restos de prazer na madrugada. Os travestis são a miséria do desejo.

Nazário, Luiz. Sexo: A alienação do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

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